MEU
HERÓI DE VERDADE
Como todo gurí nascido nos anos 50, eu também tinha minha
coleção de gibís e meus super-heróis favoritos. Zorro e seu amigo índio Tonto, Fantasma
e seu cão do qual não me lembro do nome, Tarzan, o rei das selvas e outros
mais.
Porém, tive um privilégio que transformei em segredo, e
só agora, movido pela emoção da despedida, revelo ao mundo: eu tive o meu super-herói
de verdade, de carne e osso, que eu podia ver e conversar quando bem quisesse.
Ele não escondia o rosto atrás de uma máscara, nem tampouco possuía uma
infinidade de equipamentos de defesa e ataque. Sua única vestimenta era um
calção de brim azul amarrado na cintura, sua única arma um sorriso tímido, que revelava
o altruísmo que havia dentro daquela alma.
Seu nome oficial
poucos conheciam, José Martins Ribeiro Nunes, porém seu nome de guerra estava
na boca de todos quando o assunto era o mar, o misterioso mar: Zé Peixe.
Suas aventuras nas águas sergipanas correram o Brasil e o
mundo, e muitos não acreditavam no que ouviam.
Várias lendas giravam em torno dessa figura fantástica. Algumas diziam
que ele não se banhava com agua doce, outras que possuía escamas em algumas
partes do corpo, e ainda havia quem jurasse que dormia numa banheira cheia de
agua salgada.
A verdade é que, tal qual um peixe ele não podia viver
longe do mar. Alí era seu habitat natural, sentindo-se bem melhor que em terra firme.
Todos os dias acordava às 5 horas da manhã e adentrava ás aguas então límpidas
do Rio Sergipe, e nelas percorria distancias imensas, chegando facilmente ao
mar aberto, num percurso que ultrapassava os 10 quilômetros.
Conheci-
o i em uma inesquecível manhã de domingo, graças à amizade com a família de Gildo
Salva vidas, outro ás das águas.
Todos os domingos, Gildo pegava os filhos, Gileno e Leila,
e os levava ao trabalho, no posto de salva vidas da praia de Atalaia. Antes
porem passava na casa de Zé e lá ficavam a prosear, enquanto a marinete não
passava. Os meninos naturalmente aproveitavam para atirarem-se nas aguas do rio
sem nenhum temor, junto com outros moleques da redondeza, numa feliz algazarra
matinal. Ávido para conhecer o lendário personagem, cantado em verso e prosa
pelos mais velhos, acompanhei-os certo dia, sem o conhecimento dos meus pais.
Ambos, Zé e Gildo, esperavam ansiosamente por aquele
encontro, e sentados nas escadas do ancoradouro esqueciam-se do tempo, a falar
sempre do mesmo assunto: o rio e o mar, paixão daqueles dois homens tão
diferentes fisicamente. Um, roliço como um boto e bonachão, o outro, comedido, aparentemente
frágil, e esbelto qual um marlim.
Enquanto eles
viajavam pelos reinos marinhos, nós fazíamos a festa, pulando de cabeça da
amurada. Nadando cachorrinho deliciava-me, com a dupla de irmãos, exímios
nadadores, que respeitavam minhas limitações, não se afastando muito da margem.
De
repente Zé levantou-se e dirigindo-se e chamando-me com aquela voz serena que
nunca se alterava, perguntou se eu sabia nadar. Surpreso e ofegante respondi
que mais ou menos, ao que ele puxou-me pelo braço e por mais ou menos 10
minutos ensinou-me lições inesquecíveis. A seguir convocou a todos e decidiu
que iriamos a nado até uma boia que se encontrava a uns 500 metros de
distancia. O homem comum transformava-se em minha frente no super- herói Zé
Peixe.
E lá fomos nós, com o rei dos mares dando-me só com
olhar, a certeza de segurança, enlaçando-me com aquela presença superior,
induzindo-me a braçadas e folego ritmados.
Nadamos ida e volta e a partir desse dia ele passou a ser meu super-
herói de verdade.
Desde então, acompanhei à distancia tudo a respeito
daquele homem excepcional : entrevistas, livros, recortes de jornal, fotos,
depoimentos.
Os memoráveis resgates de náufragos, salvando vidas, o
trabalho como prático da marinha guiando embarcações a um porto seguro sempre
sem pedir nada em troca, a fama aumentando dia a dia, a famosa irmã Rita, os
desafios em travessias mil, a velhice.
Fim de uma tarde de outono
em Aracaju. Zé atravessa a Rua da Frente e segue impávido em direção ao
atracadouro da Capitania dos Portos. O som de um clarim entoando a “Canção da Volta”
chega com a brisa morna vinda do sul. Para e perscruta o horizonte distante,
decifrando as marés e lendo os bancos de
areias movediças. Desce lentamente aqueles degraus, tão seus durante todos
esses anos. Toca os pés escamosos nas aguas do Rio Sergipe e vai em busca das
suas correntes marinhas, que sábias, lhe abrem caminho.Flutua sobre as brancas
espumas, em direção à boca da barra, onde o encontro do rio com o mar forma
redemoinhos medonhos, pesadelo de pescadores, sala de estar do meu herói.
Já é noite, e o danado homem-peixe recebe do Atlântico um
envolvente e perpétuo abraço.
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