sexta-feira, 1 de junho de 2012
Entre Bemóis e Sustenidos: o apogeu e esquecimento da Filarmônica Coração de Jesus
Entre Bemóis e Sustenidos: o apogeu e esquecimento da Filarmônica Coração de Jesus
Carlos Augusto Braz de Jesus
As bandas de música, como são popularmente conhecidas, tiveram origem na Europa, há séculos atrás, não se sabendo com precisão exatamente quando. É comum vermos em filmes épicos e históricos, as imagens de grupos musicais que acompanhavam os exércitos a caminho da guerra, executando marchas marciais e hinos, evidenciando dessa forma que essa prática se perde na imensidão do tempo. No meio civil eles se desenvolveram após a revolução francesa, em meados de 1789. Já o termo banda de música, segundo relatos, foi usado pela primeira vez na Inglaterra em 1678.
Já existiam grupos musicais militares no Brasil no final do século XVIII, em Recife, Olinda e Goiana (PE), porém o fato impulsionador das artes como um todo, foi sem dúvida a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, trazendo consigo a banda marcial da Brigada Real da Marinha. A partir daí, com a criação das escolas de artes na metrópole comandadas pela missão artística francesa, e posteriormente o surgimento de similares nas províncias mais desenvolvidas, o Brasil começava a conhecer os encantos da música erudita.
Melodias executadas por bandas e filarmônicas agradavam em cheio à sociedade brasileira, e em Sergipe não foi diferente. São escassas as referencias que indicam com segurança o surgimento das bandas de música em Sergipe. Citamos algumas a seguir: Banda da Força Policial de Sergipe em São Cristovão (1844), Euterpe Maruinense em Maruim (1875), Filarmônica Nossa Senhora da Conceição em Itabaiana (1879), Filarmônica Lira Carlos Gomes em Estancia (1879) e em Laranjeiras, em data incerta, foram fundados vários grupos, todos inspiradas nos ideais liberais e de fraternidade, com a intenção de democratizar a instrução musical e elevar o nível cultural das pessoas.
Informações importantes podem ser observadas na monografia intitulada “Memórias Musicais: a trajetória da filarmônica municipal Coração de Jesus em Laranjeiras”, de autoria da pesquisadora Neide Santana da Silva (2002), que relata a existência de recortes de jornais que circulavam em Aracaju, divulgando apresentações de filarmônicas entre as décadas de 40 e 50.
Por volta da primeira metade do século XX, as retretas, tornaram-se populares em Aracaju. Esses encontros sociais eram realizados tradicionalmente na Praça Fausto Cardoso, no centro da capital, abrilhantados pela presença das bandas do 28º Batalhão de Caçadores e da Polícia Militar de Sergipe, que executavam com maestria dobrados e outros ritmos.
Cronistas e historiadores, a exemplo de Murillo Mellins, em seu livro “Aracaju romântica que vi e vivi”, relatam de forma nostálgica como eram realizados esses eventos, prestigiados pelas presenças das famílias, mocinhas e rapazes em alvoroço, à procura de emoções e romances.
Até agora citamos esses grupamentos com duas denominações, bandas de música e filarmônicas, sem distingui-los em suas singularidades. Basicamente as filarmônicas estão associadas ao meio civil, enquanto as bandas de música ligam-se com mais frequência à instituições militares
A música de massa, nos dias atuais, ocupa grandes espaços midiáticos, todavia, várias filarmônicas e bandas continuam em plena atividade. O programa “Domingo é dia de retreta” , apresentado a décadas pelo comunicador Jairo Alves na Rádio Cultura de Sergipe , congrega um sem número de ouvintes, contribuindo efetivamente, para a propagação e perenidade do movimento filarmônico no estado de Sergipe.
Filarmônica Coração de Jesus
Laranjeiras, município sergipano fundado em 1605, rapidamente desenvolveu-se devido sua localização geográfica, às margens do Rio Cotinguiba, bem como pelo seu clima e solo propício ao plantio da cana de açúcar, matriz econômica do século XVIII. Berço incontestável da nossa cultura, intitulada em tempos áureos de Atenas Sergipana devido às qualidades dos seus intelectuais, artistas, ilustres pensadores e visionários, que plantaram aqui as sementes republicanas.
Em sua terras viveram figuras ímpares, da estirpe de Horácio Hora, João Ribeiro, Zizinha Guimarães, João Sapateiro, Cônego Philadelpho de Oliveira, Manoel Bahiense, entre outros, que enaltecem e enchem de orgulho essa gente morena.
Destacou-se também no cenário musical, devido à presença significativa de cinco filarmônicas, que competiam acirradamente entre si: Filarmônica Santa Cruz (pertencente à paróquia), Filarmônica União dos Artistas; Filarmônica do Comércio, Filarmônica Nossa Senhora da Conceição e a Filarmônica Sagrado Coração de Jesus, que destacamos nesse artigo, cuja jornada heroica se prolonga até os dias de hoje, suplantando as dificuldades advindas de querelas pessoais e políticas, que infelizmente colocam a arte em segundo plano. Durante a investigação para execução desse texto, não foi possível detectar com precisão em que data surgiu à Filarmônica Sagrado Coração de Jesus, devido à destruição de documentos oficiais provocados pelas diversas enchentes ocorridas na cidade de Laranjeiras.
O universo filarmônico vai muito além de bemóis, sustenidos, partituras, instrumentos musicais e seus sons. É um mundo de paixão imorredoura por uma única causa: a música.
Lágrimas, risos, decepções e alegrias fazem parte desse “habitat”, que num passado longínquo foi palco não apenas de inesquecíveis espetáculos, mas também de intrigas, espionagem e atos de esperteza. Era comum nesse período de efervescência musical, o desaparecimento de instrumentos e partituras da banda rival, antecipação de apresentações com o objetivo de mostrar um repertório inédito, que a outra não poderia repetir, sob pena de desmoralização, ensaios secretos e outras artimanhas dignas de um folhetim global, transformando a trajetória da Filarmônica Sagrado Coração de Jesus e suas coirmãs num embate saudável, que entrou para a história cultural da cidade.
Resgatar sua história implica em adentrar na alma laranjeirense e seus recônditos, onde se formou a identidade cultural dos cidadãos, amantes dos folguedos e manifestações genuinamente populares.
Totalmente inserida no contexto sociocultural do município, a filarmônica efetivamente potencializava o poder socializador exercido pela música, através do qual o indivíduo internaliza o coletivo, ou seja, através dessa socialização é que as ideias e valores estabelecidos pelo coletivo passavam a constituir o indivíduo . As filarmônicas exerciam esse poder, atraindo a atenção e admiração de pessoas de idades e classes sociais distintas, criando dessa forma um vínculo afetivo e uma noção de pertencimento entre o grupo musical e a sociedade.
Com uma economia forte, o apoio por parte do comércio local e a aprovação da população, não faltavam oportunidades para que as filarmônicas proporcionassem ao público exibições constantes, tornando-se presença obrigatória no cotidiano da cidade, em qualquer lugar que houvesse espaço para a boa música.
Por tratar-se de uma instituição privada, as bandas necessitavam de recursos para sobreviverem, sendo necessário de vez em quando um novo fardamento, aquisição e manutenção de instrumentos. Boa parte dos músicos exerciam outras atividades profissionais, seguindo os caminhos da arte musical por pura paixão, onde o comprometimento e a dedicação eram completos, sendo que para todos eles, os valores monetários advindos com as apresentações eram sempre bem vindos.
Todavia, as condições favoráveis que fizeram daquela época o ápice dos grupos musicais, não duraram para sempre, já que, com o declínio ocorrido na economia local, o apoio financeiro reduziu-se drasticamente trazendo consequências desastrosas: a progressiva desativação do grupo, culminando com sua total inexistência, que se prolongou por longos anos.
Essa desestruturação atingiu se ponto máximo durante a realização de uma das festas em homenagem ao padroeiro local, quando foi necessário convidar artistas da cidade de Estância (SE), no caso a Lira Carlos Gomes, para abrilhantarem a festividade, o que desagradou a todos, chamando a atenção para a necessidade do ressurgimento de uma filarmônica na cidade, resgatando dessa forma os costumes e tradições laranjeirenses.
Desafios enormes teriam pela frente àqueles que se incumbiram dessa tarefa. Entre eles destacaram-se Álvaro Araújo, músico local cuja formação deu-se no Conservatório de Música de Sergipe e o Sr.Manoel Campos, à época coordenador do desfile cívico de 7 de setembro, com o apoio oficial do prefeito Edvaldo Xavier de Almeida. Nessa etapa, a filarmônica recebeu nova denominação, passando a chamar-se Filarmônica Coração de Jesus, tendo como mantenedora a municipalidade e seu festejado batismo deu-se por ocasião do Encontro Cultural de Laranjeiras de 1981, mais precisamente no dia 10 de janeiro, em missa realizada na Igreja São Benedito, ocasião em que foi coroada a rainha das taieiras.
Todos esses esforços não foram em vão, já que a partir daí houve a retomada da trajetória de sucesso interrompida. A nova formação do grupo, com jovens estudantes da cidade, teve logo seu valor reconhecido através dos convites recebidos e aceitos para participação em festivais locais e interestaduais, sendo inclusive laureada com diplomas e troféus que comprovam a qualidade técnica dos seus artistas.
Porém, o futuro promissor que a todos os componentes se abria foi novamente interrompido pelas mesmas razões anteriores em meados de 1996, já sob a regência do maestro Evandro Bispo, quando o poder público esquivou-se das suas obrigações para com o grupo, e com a falta constante de provimentos e apoio logístico, o número de participantes da banda caiu sensivelmente, ficando impossível prosseguir, já que as condições existentes não permitiam apresentações dignas, nos eventos para os quais eram costumeiramente convidados.
Alguns dos seus membros, em busca de sobrevivência profissional e financeira optaram pela formação de um grupo paralelo, que participava com sucesso de festas particulares e eventualmente serviam como base quando da necessidade de exibição da filarmônica.
Os sábios versos de Chico Buarque de Hollanda, abaixo grafados, sintetizam o desalento provocado na comunidade pela ausência do seu principal grupo musical: “Mas para meu desencanto, o que era doce acabou, tudo tomou seu lugar, depois que a banda passou. E cada qual no seu canto, em cada canto uma dor, depois da banda passar, cantando coisas de amor”.
Na contemporaneidade, constata-se que apesar do valor histórico da filarmônica para Laranjeiras, ela ainda não conseguiu despertar nos administradores públicos esse reconhecimento, e a necessidade de mais uma vez recomeçar. Expondo a odisseia de tantos e tantos que colaboraram com seu esforço pessoal para a criação e resistência da Filarmônica Coração de Jesus, intenta-se suscitar discernimentos a respeito da formação artística e cultural da sociedade laranjeirense, visto que a música é uma das manifestações máximas da cultura de um povo.
Esse texto é o início de algo ainda muito maior e mais trabalhado. Já que servira de base da Monografia de uma de suas autoras.
*As autores são acadêmicos do curso de Museologia da Universidade Federal de Sergipe, campus de Laranjeiras. O artigo teve a orientação do professor M.Sc. Fábio Figueirôa, como atividade final da disciplina Introdução aos Estudos Acadêmicos. Este texto pode ser acessado no www.museologiaufs.com.br
Fontes.
MELLINS, Murilo. Aracaju Romântica que vi e vivi. Aracaju, UNIT< 2007.
TCC de Neide Santana da Silva: Memórias musicais: a trajetória da Filarmônica Municipal Sagrado Coração de Jesus em Laranjeiras. 2002.
www.darozhistoriamilitar.blogspot.com.br
www.euniverso.com.br
www.delmardomingodecarvalho.com.br
www.monumenta.gov.br
www.meloteca.com
www.filarmonicansc.art.br
www.pmse.gov.br
www.e-sergipe.com
www.estanciasergipe.org
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