quarta-feira, 6 de junho de 2012
O ÚLTIMO SUSPIRO DO CARANGUEJO
Nesse braço do Rio Cotinguiba eu passei os melhores anos da minha vida, na casinha de pau a pique e pindoba que meu pai construiu com as próprias mãos, aonde as águas escuras e viçosas vinham de mansinho com seu cheiro salobro e seus bichos do mar, que enchiam nossos jererés, virando prisioneiros dos castelos de lama que eu tão bem erguia na maré vazante.
Meu pai, negro pescador bisneto de escravos, à frente do Oxum, o mais belo barco daquela região, com suas velas amarelas estufadas ao vento, parecia um rei do Congo a desafiar monstros do rio sem o menor arrepio, acompanhado de valorosos grumetes, eu Zeca e Ciene.
Ouço ainda a brisa suave atravessando redes e tarrafas, que quando lançadas sempre voltavam repletas de peixes, fonte de deliciosas moquecas preparadas com todo gosto por minha mãe, que costumava sair pela vizinhança distribuindo os mariscos que não conseguíamos comer.
Sinto a água correr pelo meu corpo, a cortar as marolas, os gritos agudos de Ciene me incentivando a ir mais fundo, sumir e subir de repente bem pertinho dela, o coração batendo forte e o fôlego chegando aos poucos, ganhando então seus braços finos em meu pescoço, seus seios de menina moça espremidos em minhas costas nuas, o amor nascendo para sempre, junto com a lua cheia.
O tempo voou e os canaviais não minguaram, ao contrário do rio, que ficou feio e triste com seus peixes mortos, levando à mingua os pescadores, as festas em seu leito, matando uns de fome e nenhum de vergonha.
Muitos se foram para a cidade a procura do pão de cada dia, a luta para subir na vida. Eu fui um deles, levando mulher buchuda e a mala cheia de sonhos e esperança de tempos melhores.
Volto depois de tantos anos, as ruínas da casinha de sapé e pindoba trazendo-me doces recordações, justamente no dia em que travestidos ecologistas, em to-to tós prenhes de hipocrisia, fingem que querem salvar o planeta e vão pelo meu rio, gritando palavras de ordem, bêbado-felizes, que logo mais jogaram pelas ruas parte do lixo que agora tenho nos meus pés.
Ah o homem!
Capaz de criar foguetes e ir à lua, fazer transplantes e salvar vidas, inventar o computador, a televisão, e dominar a força do átomo, não foi astuto o suficiente para preservar sua casa, de zelar pelas suas matas e seus olhos d’água, micro e macro universo verde, seiva da vida.
Aos meus pés tenho águas podres, cemitério de garrafas pet, pneus e toda sorte de detritos.
Meu filho me acompanha nessa jornada de retorno às raízes, calado e impaciente, querendo logo voltar para seu mundo virtual, repleto de heróis invencíveis, sem pés com unhas pretas enfiadas na terra molhada.
De repente ele grita assustado e solta minha mão apontando para umas moitas de cipó onde um caranguejo trôpego sai da sua toca seca em busca de um sopro de vida, com suas garras frouxas que não amedrontam ninguém, o seu casco de vidro que se quebra a qualquer toque, cambaleante num vai e vem sem norte, parando a meus pés como a pedir ajuda a um velho conhecido, senhor das conchas e dos manguezais.
Impossível não pega-lo, meio sem jeito, com minhas mãos limpas e sem calos, a observar atentamente, cada detalhe, os pelos, o cheiro de nada, a marca indelével de macho ou fêmea quase invisível, o seu último suspiro de vida, seu casco afundando na água imunda, afogando meu passado e enchendo meus olhos de lagrimas.
Viro as costas para aquele agora ermo lugar, com a certeza que nunca mais voltarei ali.••.
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