sexta-feira, 1 de junho de 2012

RAÇA AMOR E PAIXÃO: DO RUBRO AO NEGRO

Do rubro ao negro Mais uma noite. Mais uma noite de fome, de solidão, de menino de rua, de gosto de fossa na boca, de nojo de si mesmo. Mais uma noite em que se morre a cada pôr do sol, em que se espera renascer quando o dia recomeça. Porém esta, diferente das outras, era uma noite feliz, não porque as ruas do Rio de Janeiro estavam cheias, não porque em cada canto se ouviam gritos, se sentiam cheiros ou se comiam churrasco e mulheres. Não por isso. Jesus cresceu sozinho nas ruas da cidade maravilhosa. Filho não se sabe de quem, se considerava não um menino órfão, mas um filho de Oxossi, um guerreiro da vida. Ele mesmo se nomeou Jesus. Não escolheu este nome por fé, mas por falta de criatividade, já que todos pronunciavam sempre aquele santo nome, porque não tornar-se famoso por meio do mesmo? Escolheu também sua data de nascimento, uma idade e uma paixão. Dizia ele ter 17 anos, embora o corpo fosse um tanto franzino, com costelas e joelhos salientes. Era de uma cor indefinível, não era negro, porém branco também não era. Os olhos eram bem grandes e amarelados, tão observadores e sem expressão. O nariz também grande parecia cheirar a pequena boca ressecada. A pele estragada e oleosa revelava seu aspecto sujo. Era feio e antipático também. Achava-se mais que os poderosos. Só havia uma coisa que o fazia humilde, chorão e bobo, era aquela paixão desenfreada, era o sangue rubro negro que lhe pulsava nas veias. Era aquele Flamengo lindo daquela torcida explosiva e nervosa. Naquela noite um sonho antigo iria se tornar realidade, embora aquela realidade fosse, para ele, mais sonho que um fato. Ali, nas redondezas do Maracanã, onde caras tão diferentes dividiam cores tão semelhantes, em meio aos torcedores que andavam em uma só direção rumo à uma partida de gladiadores flamenguistas e fluminenses, os pés nervosos carregavam para longe um papel que voava em redemoinho por sobre o asfalto. Jesus correu atrás, era sua chance. Aquele papel perdido que voava era o mesmo que todas as mãos seguravam. Pegou o ingresso sujo e um pouco rasgado nas mãos tremulas, segurou forte até quase desmanchá-lo e correu carregando no peito o coração de todos os homens batendo juntos ao mesmo tempo. Entrou e se deparou com um mundo que só existia em suas fantasias ou nas televisões vistas pelas portas dos bares sebosos. Mas naquele momento, aquela grama, aquele calor da torcida rubro negra, os holofotes, as arquibancadas, a trave vazia, o campo vazio, a barriga vazia, tudo fazia parte de um só corpo, tudo invadia e arrepiava. Era um monstro o Maracanã, por vezes barulhento, por outras, adormecido. Jesus sentou-se, algo tornava a noite mais salutar e fazia o menino esquecer-se de sua vida desgraçada. As pessoas não reparavam na sua desgracença. Ninguém se importava se ele fedia ou se roubaria. Sentiu-se igual aos tantos desgraçados. Porque em suas pobrezas ou riquezas, eram todos desgraçados e esquecidos da vida que deixaram lá fora. Um único objetivo prendia a atenção de milhares de olhos famintos de gols, como se suas vidas dependessem daquilo e dependiam. Havia um mundo lá fora sim, mas aquele ali podia ser muito mais cruel e alucinante. A partida começou, o menino sentia seus órgãos se mexerem como dançarinos, como vencedores de uma guerra qualquer. As pessoas gritavam e xingavam muito, ele não conseguia fazer o mesmo, havia um nó na garganta, fruto do desespero de um choque com uma grande selva lotada de bichos famintos, encantados pela lua branca e redonda que, ao invés de estar no céu, rolava no chão. O apito gritou forte e se podia ver os jogadores bailarem em sincronia perfeita. As pernas exibiam dribles que confundiam e, por vezes, irritavam a todos. Era um balé violento e belo. Os adversários se batiam com força, se sujavam na grama e levantavam ainda com mais garra. No primeiro gol flamenguista, Jesus, pela primeira vez na vida chorou, encolhido na cadeira de plástico segurando os joelhos contra o peito. Depois o gol adversário pôs Jesus em fúria, batendo uma mão aberta contra a outra fechada e repetindo palavras chulas junto com os outros torcedores. Mas o terceiro gol era seu e trouxera a calmaria. Foram-se os gols, dois a um. Muitas lágrimas e suor nas mãos e, enfim, a vitória. O Flamengo havia ganhado, a torcida havia gritado e Jesus, preso na sua solidão, havia feito valer a pena sua vida sofrida. Saiu de lá levado pela multidão, não sabia se flutuava ou se seus pés saíam do chão por estar sendo carregado pela força do calor humano. Estava feliz, era isso que importava. Não enxergava, nem ouvia nada, apenas deixava-se levar. De repente um rebuliço, um aperto cada vez mais forte, um não sei que vindo de qualquer lugar fez desmanchar a harmonia perfeita do rebanho. Uma correria, gritos de socorro e de atacar, uma perda de senso de direção, uma perda de forças nas pernas espertas de Jesus. O menino ficou parado, ainda era feliz, sobretudo ainda sentia fome que, porventura, naquele momento, se tornava toneladas amarradas em seus pés que não desgrudavam do chão. Ele se viu de repente com as pernas paralisadas, ainda rodeado de assassinos, se revirando ao receber as pancadas. Cacetetes, pedras e ódio caíam sobre Jesus que só conseguia enxergar os olhos gelados e sentir o gosto de sangue na boca. A torcida organizada se desorganizara pela dúvida entre o amor por um time e o desrespeito a uma vida. Tudo ficou negro e pesado. Um sonho se diluiu em morte. Mais uma noite. Menos uma vida. Mais um corpo estendido no chão do Rio de Janeiro. Conto de autoria de Paloma Augusta

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